Jussara Lucena, escritora

Textos

Invenção Tropical

Numa tarde do mês de maio de 1877, o Magnânimo Pedro II conversava com Carlos, seu alfaiate, num de seus escritórios no Palácio Imperial de São Cristóvão.

Pretendia encomendar uma nova roupa. Um traje especial para apresentar à corte a mais recente invenção que trouxera dos Estados Unidos. Conhecera Alexander Graham Bell o inventor do telefone, a máquina de falar à distância, e resolvera instalar alguns aparelhos para falar entre suas residências.

Pedro vestia roupas mais confortáveis para os padrões da época, pois, com exceção dos trabalhadores braçais, era esperado que os homens usassem casaco, chapéu e colete sempre que estivessem em público. Menos que isso era considerado inapropriado e contrário aos valores sociais. Para um imperador nem se fala! Os mais de cinquenta anos, as cansativas viagens e o diabetes judiavam de seu corpo.
A temperatura naquele outono fazia mais amena a cidade do Rio de Janeiro e a pele de seu rosto, castigada pela farta baba, também agradecia a trégua. Admirando-se no espelho, passou a mão pela barba e pelo cabelo já bastante grisalho.

- O que não se faz para garantir uma boa imagem! Não é meu bom Carlos?

- Fala da roupa que escolherá Majestade?

- Não, falo desta barba, cultivada desde cedo como símbolo do meu amadurecimento.

- Claro meu senhor! Não há como imaginar Pedro II sem a sua imponente e respeitosa barba!

- Nem um rei ou um imperador sem os seus belos trajes! Não é meu alfaiate?

- Com toda certeza meu senhor!

- Mas há uma grande diferença entre o belo, o recomendável e o desejável meu caro!

- O senhor é o Imperador, pode ter o que quiser, fazer o que desejar!

- Posso, não é? Mas tenho que me preocupar com aquilo que meus súditos pensam. Isto ou aquilo “não fica bem para um membro da Família Imperial!”. É o que mais tenho ouvido desde a minha infância. Até hoje sonho com a testa franzida de Jose Bonifácio me repreendendo.

- Achei que isto só acontecia com pobres serviçais como eu, meu senhor.

- Não importa a classe social a qual nós pertençamos, sempre há alguém tentando nos dominar e cercear meu amigo! Mesmo um imperador!

- Voltemos a falar de nossas roupas. – Emendou o imperador. Insistimos em adotar os costumes europeus. Lembra-se da roupa que usei na Fala do trono em 1872? – Indagou o Imperador.

- Claro meu senhor! Minha equipe trabalhou durante quase dois anos naquele rico e exuberante traje! Utilizamos um veludo negro, italiano, tecido a partir de uma seda especial.

- Não acha você que quando escolhemos uma roupa como aquela nós estávamos presos ao passado?

- Mas, era uma roupa digna de um grande imperador. O senhor não gostou?

- Gostei, é claro! Mas temos que nos adequar aos novos tempos. Hoje, olhando para o retrato daquele evento, me vi vestindo uma roupa adequada para o século XVI, num continente frio. Lá as temperaturas chegam a muitos graus negativos. O termômetro foi inventado naquele mesmo século, mas, a maior parte de nós insiste em ignorá-lo!

- Na semana passada um mercador descreveu para nós a neve e a quantidade de peças de roupa que ele precisou vestir para suportar o frio. Acredito que um carioca morreria se vestisse somente as roupas daqui neste cenário de gelo,Majestade.

- Nem tanto meu caro. Posso lhe garantir que com nossos trajes podemos nos sentir bem melhor num clima mais ameno. Precisa conhecer a nossa casa de verão na região serrana, lá também faz muito frio!

- Acredito na sua sabedoria Majestade. Por falar nisso, dizem por aí que o senhor também é um grande futurista e que todas as suas previsões acontecem. Outros acreditam que o senhor é um bruxo ou dispõe de bruxos a seu serviço. Por exemplo, contam que foi o senhor que deu vida à máquina que fala do professor Norte Americano.
- Não sou bruxo, mago ou qualquer coisa parecida. Apenas tenho acesso a algumas informações do que acontece no resto do mundo, em lugares onde há mais conhecimento, mais ciência. Minhas viagens também me ajudaram a imaginar como será o futuro. O aparelho inventado pelo Senhor Bell vai revolucionar o mundo!

- O senhor poderia fazer uma previsão para mim, agora?

- Está bem, lhe digo que será passado mais de um século e o povo desta cidade não se livrará do maldito costume de vestir trajes tão formais e quentes! – Previu Pedro II sorrindo.

- Isto é uma previsão ou o senhor está rogando uma praga, meu senhor?

- Não fica bem um imperador rogar uma praga ao seu povo!Bom povo, este nosso povo!

- Olhe para fora, meu bom Carlos! O sol escaldante. Se estivéssemos numa de nossas praias, qual seria a sua vontade?

- Tomar um banho de mar!

- E você acha bom tomar um banho de mar com toda aquela roupa, com os trajes que a nossa sociedade nos impôs?
- Confesso que eu gostaria de sentir a água morna do mar tocar toda a minha pele, sentir a brisa do vento que sopra do mar para a terra refrescando o meu corpo. Oh! Desculpe-me pelos meus pensamentos obscenos, Majestade!
- É da natureza humana! Não se preocupe.

- Já falamos diversas vezes sobre a fábula de Andersen, não é Carlos?

- Claro meu senhor! Cada vez que a ouço contada pelo senhor fico pensando se Vossa Majestade não desconfia de que eu também roube seus tecidos e adornos tal qual os comerciantes da história!

- Imagine! – Gargalhou o imperador.

- Estive pensando, meu bom alfaiate: os índios que aqui habitavam e habitam não usam roupas suntuosas ou cobrem seu corpo como nós. Eles também possuem seus chefes, que se vestem com as mesmas roupas, com alguns pequenos adornos retirados da própria natureza, não é verdade?

- Sim, meu senhor. Seus trajes ou a falta deles parecem mais adequados ao nosso clima. – Concordou Carlos.
- Você sabia que na antiga Roma, em 300 a.C as mulheres ao banhar-se nas piscinas usavam apenas duas peças de roupa, minúsculas, uma cobrindo as vergonhas na parte de cima e outra na de baixo?

- Parece-me muito interessante, porém pecaminoso, meu senhor.

- Pois bem! Surgiu-me uma ideia, porém, exijo segredo!
- Se é a sua vontade!

- Prepare-me um traje especial para um banho de mar!
- Com certeza! Penso que uma túnica feita em seda, sem mangas, uma calça mais estreita nos tornozelos e um meião sejam adequados meu senhor.

- Não, você não entendeu! Prepare-me uma roupa própria para o banho de mar de um cacique indígena!

- Mas meu senhor...

- Carlos, não questione o seu imperador!

- Mas como pretende usa-la, meu senhor?

- Faça a roupa, do resto cuidarei. Melhor, faça roupas para três pessoas: para mim, para você e outra para Rafael.

- Chamou-me Majestade?

- Oh! Olá Rafael, chegou em boa hora.

- Pois não, meu senhor!

- No fim de semana vamos tomar banho de mar.

- O senhor e mais quem?

- Nos três, os sujeitos aqui nesta sala.

- Desculpe-me Majestade, acredito que eu não tenha entendido direito. – Disse Rafael um tanto atordoado.

- No domingo vamos tomar banho de mar na Praia da Moreninha em Paquetá!

- Desculpe-me a intromissão, meu senhor, mas vamos tomar banho de mar em Paquetá vestidos com trajes similares ao dos indígenas! – Completou Carlos.

- Perdoe-me meu senhor, mas o senhor tem tomado o seu remédio para o diabetes?

- Estou lúcido, Rafael, estou lúcido!

- Meu senhor, desde que foi editado o romance de Joaquim Manoel de Macedo a praia tem ficada lotada nos fins de semana,nos últimos trinta anos!

- Paquetá pertence ao município da Corte, suspenda os transportes até lá. Organize uma festa na Igreja do Senhor Bom Jesus do Monte! Chegarei sem aviso.
Assim foi feito. Numa bela manhã de sol, o Imperador, seu alfaiate e Rafael tomaram banho de mar nas espessas areias da Praia da Moreninha. Soldados montavam guarda de costas para a praia com ordens expressas de não olhar para o mar.

Um dos soldados, muito curioso, não resistiu e deparou-se com a inimaginável cena: o Imperador Pedro II e seus dois acompanhantes vestiam apenas a parte de baixo do que seria um traje de banho, que a esta altura estava quase transparente, molhado pela água. Pedro II deixava à mostra a pele alva, tal qual barriga de peixe, saltava sobre as águas, mergulhava e a água lhe escorria pela barba e cabelos encharcados pela salgada água do oceano. Divertiam-se feito crianças.

O soldado não resistiu e cochichou para os colegas de farda: “o Imperador está nu!”. Em movimento uniforme todos se voltaram ao mar e puderam confirmar a visão do companheiro.

Dizem que o batalhão da guarda imperial foi todo transferido para uma guarnição criada no interior da Província do Amazonas.

No século seguinte, quando se estruturava o Museu Nacional de Arqueologia e Antropologia, no antigo Palácio Imperial de São Cristóvão, um dos organizadores encontrou um pequeno baú e dentro dele, envolto num tecido de seda, um calção de banho antigo. Também havia uma carta escrita a mão, com os seguintes dizeres:
Palácio do Paço Imperial, cidade do Rio de Janeiro, 28 de maio de 1877.

Meu caro primo Francisco José,
Neste último domingo tive uma das melhores experiências de liberdade em minha vida. Não consigo quantificar o número de vezes que lhe contei sobre a beleza da minha terra e da sensação de tocar as águas dos mares daqui. Mas, nada se compara com as sensações do último banho de mar que tomei na companhia de dois de meus criados. Como é bom sentir a densidade da água salgada diretamente em meu peito e sentir o frescor da brisa na saída da água. Senti-me de corpo e alma lavados. Junto a esta carta, segue uma peça, similar ao traje que utilizei. Sugiro que a use no próximo verão em sua encantadora Viena. Caso possua conhecimento da existência de um tecido mais elástico, sugiro que faça uma nova peça com ele, no tamanho adequado para o seu uso.

Batizei-a “sunga”, palavra de origem africana, continente de onde veio Rafael, meu bom e fiel criado, amigo e companheiro nesta aventura.
Pedro II

P.S.: Não tive coragem de enviar-lhe nem a carta, muito menos o traje, assim guardei-o bem escondido. Talvez nunca venha a ser encontrado.

O organizador do museu não teve dúvidas, procurou um amigo, dono de uma confecção, e juntos fabricaram o calção de banho mais usado nas praias tropicais de todo o mundo, especialmente nas brasileiras.



Texto selecionado no Concurso de Contos A Roupa Nova do Imperador da Série Glorioso Império do Brasil - Publicado em antologia – abr/ 2014

Adnelson Campos
21/02/2015

 

 

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